Música

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Ensaio sobre escritores em bloqueio

O bloqueio é uma coisa muito engraçada para quem nunca teve nenhum. E é o inferno de qualquer escritor, bom ou mau. Durante um bloqueio o escritor sente-se vazio, inútil e imprestável, e tem tendência para se entregar totalmente aos seus vícios. Caso não os tenha, arranja-os. Pode começar a fumar 3 maços de tabaco por dia, a beber cafeína compulsivamente ou a olhar para a mesma parede durante horas; em qualquer destas situações terá sempre o bloco e a esferográfica na mão, inocentemente à espera que um rasgo de inspiração venha. Geralmente acaba a arrancar os cabelos e a arreganhar os lábios. Claro que isto é a visão mais optimista…
Um escritor em bloqueio não dorme. Ele sente claramente o peso da derrota, que no seu caso é mais evidente do que seria noutra pessoa qualquer, porque um escritor raramente sabe fazer outra coisa para além de escrever. Por isso sente que lhe lixaram a vida, que lhe foram à fuça sem piedade e que tem a vida arruinada, porque lhe tiraram a única coisa que ele sabia fazer com um mínimo de credibilidade e competência. Não há meio-termo possível quando se fala de um escritor bloqueado. Este espécime sente tudo com muito mais intensidade, e tem tendência a absorver a totalidade do espectro negativo de qualquer fenómeno que se intrometa dentro do seu mundo de mágoa. No fundo, sente-se com um cão escorraçado para fora da sua confortável casota num dia de chuva torrencial. Mas o escritor em bloqueio não guincha. Não. O escritor rosna enfurecido contra o vizinho mau que lhe vem pedir uma chávena de açúcar, ou o amigo de infância chato e inconveniente que lhe vem anunciar a porra do seu noivado. Nos dois casos a probabilidade de os indivíduos levarem com a porta na cara ante de terem acabado de dar os cumprimentos é de 99%.
Um caso muito vulgar em escritores bloqueados é esquecerem-se do seu próprio aniversario. Aliás, eles começam-se a esquecer de tudo, de tal maneira que é como se nunca tivessem sabido de nada – a não ser que estavam bloqueados. O escritor começa a desenvolver uma obsessão compulsiva em torno do bloqueio; ele sonha com o bloqueio, acorda a pensar no bloqueio, come, respira, anda, vive em função do bloqueio. Ele movimenta-se pela casa, pela rua (se o seu estado mental lhe permitir sair à rua, o que raramente acontece) ou pelo trabalho como um autómato, um ser que não vive verdadeiramente. Apenas faz o que faz porque tem de ser. E isso ainda ajuda menos ao bloqueio.
Por isso o escritor tem poucas hipóteses: pode meter-se na droga à procura de inspiração, fazer um desporto radical qualquer para lhe levantar os ânimos, viajar à volta do mundo durante um ano e entrar em contacto com novos povos e culturas que certamente o ajudarão na sua procura por iluminação – porque no fundo é isto que o escritor procura sistematicamente, uma frase que o deixe sem respiração, uma palavra que lhe provoque calafrios, uma letra que o eleve até junto dos deuses –, procurar um psiquiatra ou matar-se. Tragicamente, a maioria escolhe a última opção. Tudo por um simples motivo: para que um escritor, um artista cujo ego e a auto-consideração estão despedaçados, juntamente com toda a sua capacidade para dizer que é forte, que aguenta e que há-de ultrapassar, levante o queixo depois de meses na fossa total e se faça à vida… é preciso ser-se incrivelmente determinado, ou incrivelmente anormal. Como a maioria não é suficientemente determinada, embora seja bastantes vezes suficientemente anormal, ou se mata ou se vira para as drogas. Tudo isto seria completamente diferente se os atrasados deixassem os amigos ou a família aproximarem-se um metro de sua casa para os confortar e ajudar a saltar por cima. Mas não. É que ainda por cima têm a mania das independências, e acham que se os deuses não os ajudaram, então ninguém consegue ajudá-los. E assim acabam com a própria vida, porque mesmo que não se matem logo a droga vai acabar por fazer o favor.
Possivelmente estão a pensar que, também, para serem estas bestas e tratarem tão mal as pessoas que gostam deles, independentemente de serem bons ou maus escritores, acho que não vão cá fazer muita falta. Mas aí é que se enganam profundamente. Aliás, atrevo-me a dizer que esse é o erro mais comum que as pessoas ditas “normais” cometem ao avaliar escritores em bloqueio. Devem entender que um escritor em bloqueio já não é uma pessoa; é um animal sequioso do barulho da caneta a roçar determinadamente o papel… ele sofre injustamente por não conseguir nada disto, e pensa que mal fez para que merecesse isto. A partir daí começa a questionar-se se será mesmo mau, até que acaba por se convencer que sim, e então não deixa ninguém aproximar-se, por um lado com medo de magoar as pessoas mais preciosas da sua vida, por outro com inveja delas por estarem tão de bem com a vida e por verem o mundo cor-de-rosa quando ele o vê preto e feio, mas a verdade é que o seu desejo mais ardente é tê-los a todos ali, à sua volta, apertando-lhe o ombro, beijando-o ou abraçando-o, dizendo-lhe que não importa que não consiga escrever, que continua a ser o grande idiota que sempre foi e que gostam dele assim.
Mas como o reflexo instantâneo de uma fera magoada é retrair-se e isolar-se, o escritor em bloqueio afasta-se do resto do mundo para definhar em paz e sossego, tentativa que acaba sempre por sair furada, excepto a parte do definhar.
Enfim, podia escrever um livro inteiro acerca de escritores em bloqueio. Acho que a sociedade no geral não contribui muito para o desencravar de uma mente artística, por ser tão mesquinha e trivial – sabem, quando um escritor entra em bloqueio tudo lhe parece fútil, e entra e pânico ao pensar como nunca se tinha apercebido disso. Começa a achar tudo estúpido, até os seus próprios interesses, e consequentemente a si próprio. Mas isso já é outra conversa, e não me vou pôr para aqui a divagar acerca da sociedade contemporânea senão iam começar a bocejar. E aí eu ia entrar em pânico, começar a espumar da boca e a ter um bloqueio… e o resto já sabem.

By Adriana Albuquerque, all rights reserved

Nenhum comentário:

Postar um comentário